domingo, 12 de dezembro de 2010

Ritos Iniciais na Santa Missa III

Por D. José Palmeiro Mendes, OSB 

Abade Emérito do Abadia Nossa Senhora de Montserrat
(Mosteiro de São Bento), no Rio de Janeiro, RJ 

A parte 1 deste estudo encontra-se neste link 


A parte 2 deste estudo encontra-se neste link

Ato penitencial      

Segue-se o ato penitencial, o qual quer predispor interiormente a assembléia para bem celebrar a Eucaristia. Ele é importante; não tem caráter sacramental, “não possui a eficácia do sacramento da penitência”, diz, de forma bem explícita, em nova formulação, a Instrução Geral do Missal Romano, 51, mas serve bem para perdoar nossos pecadoscotidianos, pecados veniais. O povo de Deus volta-se para seu Senhor, a fim de se reconhecer pecador e se preparar para acolher o dom de Deus. É uma confissão geral de toda a assembléia, rito de reconciliação com Deus e com os irmãos.

A propósito, é bom lembrar o caráter de penitência e a força expiadora dos pecados que tem toda celebração da Eucaristia. Na Introdução ao Rito do Sacramento da Penitência nota-se que “no sacrifício da Missa a paixão de Cristo se faz presente e a Igreja oferece de novo a Deus, para a salvação de todo o mundo, o Corpo que é entregue por nós e o sangue que é derramado para a remissão dos pecados. Na Eucaristia, Cristo está presente e se oferece como “vítima de nossa reconciliação” e para que “sejamos reunidos num só corpo” pelo seu Espírito Santo” (nº 2). E mais adiante: “De muitas e variadas maneiras o povo de Deus pratica e realiza uma contínua penitência. Participando da Paixão de Cristo pelos seus sofrimentos e convertendo-se cada vez mais ao Evangelho de Cristo pela prática das obras de caridade e misericórdia, torna-se no mundo o sinal da conversão a Deus. A Igreja o expressa em sua vida e o celebra em sua liturgia, quando os fiéis se reconhecem pecadores e imploram o perdão de Deus e dos irmãos, como sucede nas celebrações penitenciais, na proclamação da palavra de Deus, na oração e nos elementos penitenciais da celebração eucarística” (nº 4).       

Desde sempre a fuga do pecado foi tida como uma condição extremamente importante para celebrar a Eucaristia o mais dignamente possível e para apresentar-se diante do altar de Deus com as disposições requeridas. Quem se aproxima de Deus deve ter consciência de sua própria indignidade. Isto se vê claramente nas teofanias do Antigo Testamento. O homem sabe ser indigno e realiza um ato que manifesta esta sua indignidade: como Moisés diante da sarça ardente tira as sandálias ou cobre o rosto e se prostra em terra (lembremos a prostração na solene ação litúrgica da Sexta-feira santa); como Elias, que cobre o rosto com o manto ao se dar conta da presença de Javé no murmúrio de uma brisa suave no monte Horeb. O próprio Cristo recorda que é necessário reconciliar-se com o irmão antes de levar os próprios dons ao altar. A Didachê, escrito possivelmente do séc. II, prescreve (14, 1) que é necessário confessar os próprios pecados para que seja puro o sacrifício que vai ser oferecido. Uma confissão dos pecados não é, por isso, apenas um reconhecimento dos próprios defeitos e da própria indignidade. O crente sabe que a bondade e a misericórdia de Deus pode destruir o mal que está nele. Deseja libertar-se do peso de seus pecados com uma humilde confissão de sua culpa, implorando a graça de Deus, para poder participar dignamente da celebração dos sagrados mistérios. (cf. Johannes Hermans, “La celebrazionedell´Eucaristia – Per una comprensione teológicopastorale della messa secondo ilMessale Romano”, Editrice Elle di Ci, Turim, 1985, pp. 167-168).           

A partir desta concepção, se entende porque em vários momentos da missa tenhamos como que outros atos penitenciais (são as chamadas “apologias”): p. ex., o rito do lavabo e várias das orações antes da comunhão.         

O rito penitencial começa com um convite do sacerdote a um reconhecimento das culpas, a um ato interior de arrependimento. Segue-se então uma breve pausa para a reflexão pessoal. Oxalá haja de fato tal momento de silêncio, infelizmente omitido em tantas ocasiões. Não é para durar muitos minutos, mas também não deve ser brevíssimo, que nem permita tal reflexão e exame de consciência. Os fiéis naturalmente precisam saber o sentido deste momento de silêncio e aproveitar bem o tempo para um real exame e reconhecimento de suas culpas e desejo de conversão. Johannes Hermans, citado acima, fala da indubitável importância deste momento. “Apenas se há este tempo, a confissão comunitária poderá ser realmente fundada num ato pessoal e no recolhimento os fiéis poderão se arrepender. Aqui está o significado do silêncio: que cada um se dê conta pessoalmente do significado e do alcance do rito na própria vida” (pp. 169-170).       

O ato penitencial tradicional é o “Confiteor”, que foi um pouco simplificado no Missal de Paulo VI , acrescentando-se também uma referência o vasto campo dos pecados de omissão. Ele é dito ao mesmo tempo pelo sacerdote e pelos fiéis.

Existem, porém, duas fórmulas alternativas de ato penitencial. A primeira consiste numa dupla invocação à misericórdia de Deus: dois versículos que são recitados alternadamente pelo sacerdote e pelo povo. Tal ato penitencial é muito breve: para que funcione bem parece ser desejável que lhe seja dado maior relevo, fazendo-o preceder realmente de um conveniente silêncio. É como que um grito da alma: “Tende compaixão de nós, Senhor!” Que seja realmente profundo. A temática desta breve fórmula corresponde parcialmente a Joel 2, 17 (“Entre o pórtico e o altar chorem os sacerdotes, ministros do Senhor e digam: “Senhor, tem piedade [tem compaixão] do teu povo!...) e ao Salmo 84, 8 (“Mostrai-nos, ó Senhor, vossa bondade [compaixão], concedei-nos também vossa salvação”).

A segunda fórmula alternativa de ato penitencial, é a mais problemática, pois mistura dois elementos originalmente diversos. Trata-se de uma combinação do “Kyrie” [“Senhor, tende piedade de nós’] (parte que segue imediatamente ao ato penitencial) e de três predicados de Cristo (que viestes salvar os corações arrependidos, que viestes chamar os pecadores, que intercedeis por nós junto do Pai), inseridos no “Kyrie” como invocações ou “tropos”. Há para os diversos tempos do ano litúrgico na edição brasileira do Missal invocações alternativas, algumas talvez não muito felizes, pois não tem sentido penitencial. Poderiam ser criadas pelo celebrante outras invocações mais adaptadas ao dia, mas de fato, pensamos, isto não ocorre com muita freqüência. Cremos, aliás, que esta terceira fórmula de ato penitencial é a menos usada. Um liturgista americano, colaborador do Manual de Liturgia do Pontifício Instituto Litúrgico de Santo Anselmo, observa: “O “Confiteor” e a primeira fórmula opcional são formas de confissão geral, que exprimem um sentido de culpa pessoal e um pedido à piedade de Deus. A fórmula “Kyrie”, porém, tem um caráter muito diferente. (...)além de ser uma fórmula variável, é mais um louvor dirigido a Deus por suas ações misericordiosas do que um pedido de misericórdia. Neste sentido é mais semelhante ao “Gloria” do que ao ato penitencial. (...)” (Michael Witczak, “L´Ordo Missae di Paolo VI – Il Sacramentario”, in “Scientia Litúrgica – Manuale di Liturgia”, vol. III, PIEMME, Casale Monferrato 1998, p. 159). De fato, esta forma não constitui uma confissão explícita de culpa, que fica apenas implícita. O que é plenamente ressaltada é a obra salvífica de Cristo e não a recordação e a descrição dos defeitos e erros humanos.   

Enfim, cada uma das três fórmulas de ato penitencial conclui com a mesma oração de pedido de perdão dos pecados: “Deus todo-poderoso tenha compaixão de nós, perdoe os nossos pecados e nos conduza à vida eterna” (e atenção para o significativo “Amém” da assembléia, “que assim seja”). O sacerdote inclui a si próprio nesta oração de perdão, coloca expressamente a si próprio e a comunidade entre os pecadores diante de Deus. Repitamos o que dissemos no início, usando palavras de Johannes Hermans na obra citada: “A atual oração que conclui o ato penitencial não tem valor de absolvição sacramental em sentido estreito, ainda que se lhe pode atribuir uma eficácia purificadora” (p. 170).

Aspersão dominical da água benta    

Falamos de três fórmulas de ato penitencial. De fato existe ainda como que uma quarta, que é destinada à liturgia dominical: o rito da bênção e da aspersão da água. Está num Apêndice do Missal. É um rito que parece datar do séc. IX, mas com elementos já bem anteriores.      

Está sendo revalorizado, tanto que na nova edição da Instrução Geral do Missal Romano foi acrescentado o seguinte parágrafo ao nº 51, que trata do ato penitencial: “Aos domingos, particularmente no tempo pascal, em lugar do ato penitencial de costume, pode-se fazer, por vezes, a bênção e aspersão da água em recordação do batismo”.    

Ele tem lugar logo após a saudação inicial, substitui em si o ato penitencial e o Kyrie. Pode ser realizado em todas as missas dominicais e não apenas em missas solenes. Quer ser recordação do batismo e pede-se com ele que Deus se digne fazer com que permaneçamos fiéis ao Espírito Santo recebido.

Depois da bênção da água com uma das três fórmulas prescritas e misturado o sal na água (o que é facultativo), tem lugar a aspersão da assembléia. É rito apreciado por nosso povo. Quem está acostumado a este rito por freqüentar igrejas em que se cultiva o canto gregoriano, conhece os cantos que acompanham a aspersão: “Asperges me” ou “Vide aquam” (no tempo pascal). O Missal Romano, contudo, apresenta mais cantos: três para fora do tempo pascal e três para o tempo pascal. Para estas outras fórmulas não existem melodias gregorianas.

Terminada a aspersão, o sacerdote recita uma oração final, pedindo que Deus nos purifique de nossos pecados e nos torne dignos da mesa de seu reino (o que mostra o sentido penitencial que tem o rito, sendo de lembrar o sentido purificador que possui a água e o sal: a água tira as manchas e o sal purifica e conserva. O deixar-se aspergir com a água benta, e portanto santificante, constitui uma confissão de culpa ou um ato penitencial e, ao mesmo tempo, um ato de fé na misericórdia que Deus manifesta a quem com fé participa deste ato penitencial. No sinal da aspersão o crente confessa sua culpa, implora a graça de Deus para poder estar novamente sem pecado, como Deus o tinha feito com o batismo e apresenta-se diante dele para nutrir-se da palavra de Deus e do Corpo e Sangue de Cristo (cf. Hermans, obra citada, pp. 181-182).

Kyrie eleison          

Temos aqui um resquício da língua grega na liturgia latina. Kyrie, eleison, ou seja, Senhor, tende piedade de nós (mais literalmente: Senhor, piedade). Trata-se de uma aclamação já conhecida dos pagãos, uma aclamação honorífica endereçada ao imperador, a um general vencedor de uma guerra ou mesmo a um deus. Era um grito de júbilo, como que um “viva!”. Em si não tem sentido de perdão, não constituindo uma fórmula de ato penitencial, como vemos alguns sacerdotes fazer (outra coisa é a 3ª fórmula de ato penitencial, mencionada em nosso artigo anterior, que integra o Kyrie com três invocações a Cristo). Mas é claro que exprime sempre uma súplica, sendo, p.ex., também utilizada como resposta a intercessões do Ofício Divino.
           
Sabemos, por Etéria, que em Jerusalém, pelo ano 400, no fim do ofício de Vésperas, um diácono propunha intenções, muitas vezes nomes de pessoas, às quais um grupo de crianças respondia Kyrie eleison. As Constituições Apostólicas (cerca de 380) nos mostram que depois da despedida dos diversos grupos, catecúmenos, etc, havia uma intenção à qual os fiéis respondiam Kyrie eleison.A origem do Kyrie na missa romana é controverso e não vamos entrar aqui nas hipóteses levantadas.           

As invocações do atual Missal, a serem cantadas ou recitadas, são três, seguindo-se sua repetição, totalizando então seis vezes: duas vezes Kyrie, duas vezes Christe e mais duas vezes Kyrie. Não se exclui um número maior de repetições por causa da índole das diversas línguas, da música ou das circunstâncias (cf. Instrução Geral sobre o Missal, 52).De fato, a partir do final do séc. VIII o número tinha sido fixado em três Kyrie, três Christe e novamente três Kyrie. No atual Gradual Romano temos diversos casos em que aparecem três vezes cada aclamação, totalizando portanto nove vezes.      

Daí o sentido trinitário que vai tomar este canto. Tal interpretação, porém, não é a primitiva, tratando-se na verdade de um canto em que os fiéis aclamam a Cristo e imploram a sua misericórdia, não apenas quando dizem “Christe eleison”. O Senhor, o Kyrios, é sempre Jesus Cristo. O termo Kyrios, na tradução grega da Bíblia dos Setenta, traduz o nome inefável de Deus e a profissão de fé cristã consiste em aplicá-lo a Jesus (cf. Rm 10,9: “Se confessares com tua boca que Jesus é o Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre mortos, serás salvo”).Ele, após fazer-se obediente até a morte, é proclamado para a glória de Deus Pai: “Jesus é o Senhor” (cf. Fl 2, 9-11).
A súplica do Kyrie é no fundo um louvor dirigido àquele que é invocado. O brado de súplica exprime a confiança na bondade e no poder de Jesus Cristo. É um louvor que brota da humildade, uma súplica que parte de um espanto, que louva e adora. Se vê o sentido triunfal que possui em muitas melodias gregorianas.

O número de nove invocações, a que acima nos referimos, foi fixado pelo Papa São Gregório Magno. Se diz que ele tinha diante dos olhos a Cristo cercado pelos nove coros de anjos, que o louvam como Senhor. (cf. Theodor Schnitzler, Missa mensagem de vida, pp. 104-107).          

Enfim, lembremos que algumas vezes o Kyrie é omitido: quando precedem determinadas funções, como a bênção e aspersão da água benta aos domingos, ou uma procissão (como no Domingo de Ramos e a festa da Apresentação do Senhor) ou quando a missa está integrada a uma hora canônica, como Laudes e Vésperas.           

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